Exclusivo para Assinantes
Brasil

Nasa: 54% do fogo na Amazônia em 2020 têm origem no desmatamento

Agência inaugurou nova ferramenta de mapeamento de queimadas para 'combater falsas narrativas', diz cientista americano
Foco de incêndio próximo à Reserva Extrativista Jaci-Paraná, em Porto Velho, Rondônia. Foto: Christian Braga / Agência O Globo
Foco de incêndio próximo à Reserva Extrativista Jaci-Paraná, em Porto Velho, Rondônia. Foto: Christian Braga / Agência O Globo

SÃO PAULO — Um novo sistema de monitoramento de queimadas na Amazônia é capaz de identificar a fonte dos focos de incêndio e mostra que, em 2020, uma parcela de 54% deles teve como origem o desmatamento , ainda que a temporada de fogo mal tenha começado na região. Usando dados do sitema VIIRS de imagens de satélite, o trabalho é uma colaboração internacional encabeçada por Douglas Morton, cientista do Centro Goddard da Nasa, e Niels Andela, da Universidade de Cardiff (Reino Unido).

Leia mais: Alemanha alerta que destruição da Amazônia ameaça acordo entre Mercosul e União Europeia

O sistema criado pelos cientistas para o projeto GFED (Global Fire Emissions Database) é o primeiro capaz de apontar em tempo real não apenas onde os focos de fogo estão, mas também a razão pela qual ocorrem: incêndios florestais, queimadas pequenas para limpar pastagem, queima de campos naturais ou incineração de árvores após desmate.

— Queremos maximizar nosso entendimento sobre o que ocorre em solo e, honestamente, combater algumas das falsas narrativas que foram apresentadas sobre a natureza da atividade de queimada pela região — disse Morton ao GLOBO na manhã desta sexta-feira.

Leia mais: Mourão diz que Amazônia 'não está queimando' e convida Leonardo DiCaprio para conhecer floresta

Boa parte da motivação para montar o novo sistema surgiu após a crise do desmatamento em 2019 , quando o governo federal buscava disseminar a ideia de que os fogos na Amazônia estariam ocorrendo em áreas que não são de floresta, para atividades como limpeza de pastagem ou lavoura, ou incêndios florestais "naturais".

Fogo persistente, revelou análise do novo sistema da Nasa

Para saber se um foco de fogo tem origem no desmatamento, o sistema criado pela Nasa analisa o comportamento do foco de radiação detectado pelo satélite ao longo de vários dias e o compara com pontos encontrados ao redor para fazer uma classificação.

Enquanto o fogo de uso agropecuário tende a ser circunstancial e isolado, durando um dia, o fogo do desmatamento tende a ser persistente e emitir uma grande quantidade de radiação.

— Um fogo que começa numa área que foi desmatada vai queimar por vários dias, e o processo de limpar e queimar aquela paisagem envolve empilhar a madeira e atear fogo repetidas vezes — explica Morton — Esse padrão de queima em um único ponto do solo, múltiplas vezes na mesma estação seca, só pode ocorrer se você tem madeira para queimar ali. Não é o padrão que vemos quando se queima os resíduos de uma colheita do ano passado, ou quando se reforma uma área de pasto.

Queimadas: Ibama gastou apenas 19% de seus recursos previstos para contenção e prevenção de incêndios florestais

Neste ano, antecipando uma possível crise como a de 2019, o Palácio do Planalto já adiantou um decreto com uma moratória no uso fogo para manejo de terras na Amazônia, em 15 de julho. Além disso, busca prorrogar a atuação das Forças Armadas na operação de Garantia da Lei e da Ordem (GLO) na região.

— Do meu ponto de vista, usando nossa nova ferramenta de classificação, não enxergamos essa moratória tendo muito impacto, se é que teve algum — diz Morton.

O sistema de monitoramento novo da nasa, por enquanto, inclui só a porção da Amazônia abaixo da linha do equador, porque a estação asssociada a devastação na porção austral do bioma começa antes. O monitoramento da Amazônia do Hemisfério Norte, que inclui Roraima, começa no fim do ano.

Como a temporada típica de desmatamento e queimadas dura até outubro, ainda é cedo para dizer se 2020 será mais um ano recorde de fogos da década, como foi 2019 , mas os dados até agosto mostram uma quantidade de fogos já acima da média.

2020 deve ter períodos de seca mais intensa, o que acende o alerta

Para o cientista atmosférico Paulo Artaxo, da USP, esse ano inspira mais preocupação, porque as previsões climáticas para os próximos seis meses indicam um período de seca mais intensa na região. A estiagem não apenas eleva o risco de que fogos de agropecuária escapem do controle para dentro das florestas, como também facilita o trabalho de quem pretende desmatar grandes áreas ilegalmente.

— O perigo de falar só da questão do tempo é que isso permite o governo dizer que o aumento das queimadas ocorre só porque está chovendo menos, mas isso não é verdade — diz Artaxo, que conclui: — Esse aumento se segue ao desmonte dos órgãos de fiscalização do Ibama feitos desde janeiro do ano passado e, sem fiscalização, o desmatamento corre solto.

Leia mais: Aumento de queimadas pode intensificar colapso na saúde na Amazônia, diz estudo

É consenso entre cientistas da área, também, que mesmo quando incêndios escapam para a floresta nativa, o fogo em geral se propaga apenas pelo sub-bosque, sem afetar copas das árvores mais altas. Mesmo sendo extremamente nocivo para a mata, esse tipo de incêndio não consome tanta biomassa de madeira quanto o fogo de desmatamento e emite menos gases de efeito estufa.

— A Amazônia não é inflamável naturalmente, não pega fogo como o cerrado e o pantanal — explica Ane Alencar, diretora de ciência do Ipam (Instituto de Pesquisas Ambientais da Amazônia). — A floresta amazônica tem um regime de fogo muito longo. Varia de 500 anos a 1.000 anos para um fogo natural voltar a ocorrer no mesmo lugar na floresta. Para esse fogo ocorrer, é preciso ter condições extremas de seca e de uma fonte de ignição: e são pessoas que provocam essa ignição.

Características como essas foram levadas em conta por Morton e Andela para criação do novo sistema de classificação de fogos da Nasa. E mesmo sistemas que não possuem essa ferramenta, como o do Inpe (Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais), conseguem ver essa correlação de outras maneiras.

O Deter, sistema do Inpe para alertar fiscalização de desmatamento por imagens de satélite, aponta neste ano um aumento da tendência de desmate. Comparando os últimos 12 meses com o período anterio, foram 34% mais alertas de desmate. E as áreas onde o desmatamento vinha ocorrendo com mais força desde abril são justamente aquelas onde o fogo detectado pelo Programa Queimadas, também do Inpe, está ocorrendo com maior intensidade agora em agosto. Para os desmatadores, agora é a hora de atear fogo à madeira que ficou secando ao relento por vários meses.

Amazônia em risco: política ambiental do governo ameaça estratégia internacional das empresas

Os focos mais preocupantes de incendio agora são o trecho da BR-163 no sul do Pará, o trecho da transamazônica no sudeste do Amazonas, a região a oeste do Parque Nacional do Xingu, no Mato Grosso, e as proximidades da Terra do Meio, no Pará.

— Nossa nova ferramenta, junto de outras informações que são produzidas em solo e com uso de dados de satélite, mostra uma imagem muito clara de como o fogo de desmatamento é o tipo dominante de fogo agora, em 2020, nesta estação de fogo na região amazônica — diz Morton.

A reportagem do GLOBO contatou o Ministério do Meio Ambiente na manhça desta sexta para saber se estaria de acordo com as avaliações feitas pelo projeto da Nasa, mas a pasta afirmou que não vai se pronunciar sobre o assunto. O jornal aguarda pronunciamento do Ministério da Defesa e da Vice-Presidência, que assumiram a comunicação oficial sobre o tema.