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Brasil

É cedo para saber se imunidade de rebanho já está em ação, dizem cientistas

'É especulação. Existe uma expectativa, mas ela ainda precisa se confirmar', diz infectologista
Pandemia. Metrô lotado em São Paulo, que retomou atividades em diferentes fases no estado Foto: Edilson Dantas / Agência O Globo
Pandemia. Metrô lotado em São Paulo, que retomou atividades em diferentes fases no estado Foto: Edilson Dantas / Agência O Globo

SÃO PAULO — Com a forte presença da Covid-19 em muitas cidades, há estudos que questionam se algumas delas já teriam adquirido imunidade coletiva ao vírus, o que frearia uma segunda onda da epidemia. Essa hipótese, porém, ainda é objeto de especulação, e cientistas dizem que é cedo demais para ser otimista com esse efeito para conter a pandemia.

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Imunidade de rebanho Foto: Arte
Imunidade de rebanho Foto: Arte

Essa proteção coletiva contra patógenos é comumente chamada de “imunidade de rebanho”, expressa pela porcentagem da população que, uma vez imunizada, impediria o surto de se alastrar, diminuindo-o.

Imunidade de rebanho Foto: Arte
Imunidade de rebanho Foto: Arte

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No início da epidemia do novo coronavírus, cientistas estimaram que a imunidade de rebanho seria atingida quando cerca de 60% da população estivesse imune. Um estudo da Universidade de Estocolmo que saiu em junho, porém, acendeu um debate ao calcular que uma porcentagem de 43% ou menos já seria suficiente para frear a Covid-19.

Como muitas metrópoles duramente atingidas pela pandemia já apresentam uma certa redução no número de mortes registradas por dia para o vírus (incluindo Rio de Janeiro, com 79 dos 92 municípios do estado apresentando queda no total de casos confirmados , e Manaus), levantou-se a especulação sobre se a imunidade de rebanho poderia estar em ação.

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A resposta precisa para isso, porém, depende de um número grande de variáveis. E é preciso considerar que as populações são heterogêneas, com pessoas mais e pessoas menos propensas a contrair o vírus, ou mais e menos propensas a morrer caso o contraiam.

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É essencialmente isso que o grupo sueco, liderado pelo matemático Pieter Trapman, considerou em sua estimativa mais otimista. Em artigo na revista Science, porém, os pesquisadores reconhecem que sua ideia ainda é em grande medida um exercício acadêmico.

“Nossas estimativas devem ser interpretadas como ilustração de como a heterogeneidade da população afeta a imunidade de rebanho, e não como um valor exato ou uma estimativa melhor”, escreveram.

O estudo partiu do princípio de que cada pessoa infectada pelo vírus tem o potencial de transmiti-lo em média para outras duas e meia. No jargão dos epidemiologistas, isso seria dizer que o vírus “tem R de 2,5”.

Em princípio, essa capacidade de transmissão exigiria que 60% de uma população tivesse tido contato com o coronavírus para adquirir proteção. Mas, como a primeira onda do vírus já teria infectado a parcela da população que se expõe mais, a linha de corte para a imunidade de rebanho diminui.

Rebanho em alerta

A maior pesquisa feita com testes de anticorpos no Brasil, porém, indica que 3,8% da população foi exposta, parcela ainda longe da imunidade de rebanho, mesmo considerando que em Manaus esse percentual é de 8% e, no Rio, de 10%.

César Victora, da Universidade Federal de Pelotas, um dos líderes do projeto, acompanhou os estudos que revisam para baixo a linha de corte da imunidade de rebanho da Covid-19.

— Ainda não é possível saber se alcançamos imunidade coletiva em algumas cidades, mas estou mais otimista hoje do que há alguns meses. Estamos cada vez mais convictos que ela será alcançada com percentual da população menor dos que os 60% — afirma o pesquisador, que conclui: — Sabemos isso porque em nenhum lugar do mundo a prevalência de anticorpos passou de 30%, e ainda assim o número de infectados e mortos diminuiu. Por que isso ocorreu ainda não sabemos, mas há hipóteses.

Segundo Alberto Chebabo, vice-presidente da Sociedade Brasileira de Infectologia, uma possibilidade é que algumas pessoas imunes não desenvolvam muitos anticorpos ao vírus, mas sejam protegidas pela ação de linfócitos, uma tipo de célula do sistema imune. Isso implicaria um grau de exposição maior do que o observado com testes de anticorpos. Outra possibilidade é que a imunidade já existente a outros tipos de coronavírus mais inofensivos possa estar atuando contra o Sars-CoV-2, o vírus específico que provoca a Covid-19.

— É especulação — diz Chebabo — Existe uma expectativa, mas ela ainda precisa se confirmar.

‘Obra literária’

Já Paulo Lotufo, epidemiologista da USP, enxerga o debate de uma perspectiva menos otimista. Segundo ele, se há cidades onde o vírus encontra menos espaço para se propagar, é porque elas falharam em proteger quem era vulnerável. É o caso de Manaus, onde o número oficial de óbitos por Covid-19 é de 1.900 pessoas.

— Em Manaus, o vírus venceu. Lá ele fez o que bem entendeu — diz Lotufo.

Se o preço a pagar pela aquisição da imunidade de rebanho é pago em mortes, diz, mesmo uma parcela de contaminação mais baixa, de 35%, poderia implicar na morte de mais de 700 mil pessoas, assumindo uma taxa de letalidade de 1%.

Isso implicaria multiplicar por dez a mortalidade atual. O Brasil já registrou 1.887.959 casos da doença, com 72.921 óbitos, segundo consórcio de veículos de imprensa (do qual O GLOBO faz parte) que apura estatísticas estaduais do coronavírus. Com 770 mortes em um dia, ontem o país atingiu a sua maior média móvel semanal de mortes diárias pelo coronavírus: 1.052.

Para Lotufo, diante desse cenário, o estudo de Trapman é “uma obra literária bonita”, mas não se presta a orientar políticas públicas.

Como a maioria das cidades que reabriu no país o fez há menos de um mês, ainda é cedo para saber o real efeito desse recuo do isolamento sobre as mortes por Covid-19, afirma.

*Com Ana Lucia Azevedo