Exclusivo para Assinantes
Brasil

Covid-19: Estudo de Harvard aponta que crianças têm alta carga viral e podem ser mais contagiosas do que adultos

Pesquisadores alertam para risco 'significativo' da reabertura das escolas, contrariando tese de que os menores são menos suscetíveis à doença
Estudantes entram em sala de aula usando máscaras dentro de escola de Haarlem, na Holanda Foto: ROBIN VAN LONKHUIJSEN / AFP
Estudantes entram em sala de aula usando máscaras dentro de escola de Haarlem, na Holanda Foto: ROBIN VAN LONKHUIJSEN / AFP

RIO — Uma pesquisa conduzida pela Escola Médica da Universidade Harvard (EUA), uma das mais conceituadas do mundo, concluiu que o potencial de disseminação do novo coronavírus pelas crianças foi largamente subestimado nos últimos cinco meses da pandemia de Covid-19.

Faça o download : O GLOBO lança cartilha sobre riscos e cuidados para a volta às aulas com segurança

Ao contrário do que diferentes estudos mostraram, o trabalho, apresentado pelos autores como o mais abrangente sobre o assunto até o momento, apresenta evidências sólidas de que crianças podem ser muito mais contagiosas do que adultos, inclusive aqueles em quadro severo da doença, ainda que apresentem apenas sintomas leves.

O artigo, submetido ao periódico científico Journal of Pediatrics nesta quinta-feira, foi escrito por pesquisadores do Hospital Geral de Massachusetts, que integra a Escola Médica de Harvard. Os esforços tiveram o apoio de diversas instituições americanas, incluindo o Centro de Prevenção e Controle de Doenças (CDC, na sigla em inglês) do governo e o Instituto Nacional de Alergias e Doenças Infecciosas.

Retorno: Volta às aulas causa temores nos pais e divide estados e municípios

O trabalho avaliou 192 indivíduos de 0 a 22 anos que deram entrada no hospital, dos quais 49 testaram positivo para a Covid-19. Embora no Brasil a lei estabeleça que crianças têm de 0 a 12 anos e adolescentes, de 12 a 18, a Convenção das Nações Unidas sobre os Direitos da Criança, referendada pelo Congresso Nacional, reconhece que todo indivíduo até 18 anos é considerado criança.

Por questões metodológicas, os autores de Harvard incluíram pacientes de até 22 anos, mas os resultados conclusivos foram obtidos nos indivíduos entre 0 e 16 anos. Em média, a maioria dos que contraíram a doença no grupo amostral tinha entre 11 e 16 anos, embora a doença não tenha poupado nem mesmo bebês com menos de 1 ano.

Metade dos pacientes positivos para a Covid-19 apresentou febre, sintoma que pode ser confundido com alergias e gripes como a do vírus Influenza. Ao todo, 53% deles estavam frequentando a escola. Outros 18 deram entrada na unidade com a chamada Síndrome Inflamatória Multissistêmica Pediátrica (SIM-P), uma complicação da Covid-19 em crianças.

Os cientistas encontraram níveis de carga viral do vírus consideravelmente mais altos nas vias respiratórias de crianças nas fases iniciais da doença do que nas de adultos internados em unidades de terapia intensiva. O alojamento do patógeno nas vias aéreas é um dos principais catalisadores de sua transmissão.

Brasil: País está com contágio de coronavírus em desaceleração pela primeira vez desde abril

Apenas 27% das crianças que testaram positivo para a Covid-19 por meio do teste RT-PCR, que contabiliza a carga viral, tinham uma comorbidade específica — a obesidade. Nenhuma delas tinha doenças cardíacas, pressão alta ou diabetes, que configuram grupos de risco.

Ouça : A pandemia do novo coronavírus perde força no Brasil?

Já a Síndrome Inflamatória Multissistêmica Pediátrica afetou primordialmente aqueles entre 1 e 4 anos de idade. No caso da síndrome, a obesidade não pareceu desempenhar um papel importante.

Limitação na testagem levou a descompasso em resultados

Para os autores, boa parte dos cientistas incorreu em um erro ao analisar a evolução epidemiológica da pandemia sob a perspectiva sintomática da doença. Acreditava-se que o número reduzido de receptores do coronavírus nas crianças — a chamada proteína ACE2, pela qual a proteína spike do coronavírus entra nas células humanas — levaria a uma menor carga viral. Mas o estudo de Harvard quebra esta correlação e alerta que elas podem ser mais contagiosas independentemente da suscetibilidade à Covid-19.

“Se precauções adequadas não forem adotadas quando os alunos voltarem à escola, as crianças podem causar a próxima onda da pandemia de Covid-19”

Alessio Fasano e Lael Yonker
Pesquisadores de Harvard

Os autores da pesquisa Alessio Fasano, líder do grupo, e a médica Lael Yonker, que liderou o trabalho, afirmaram ao GLOBO, por e-mail, que o descompasso ocorreu em função da limitação de testes no princípio da pandemia, quando apenas pacientes suspeitos da Covid-19 em estado grave eram testados.

"Baseado nessa abordagem epidemiológica, chegamos à conclusão de que a pandemia da Covid-19 parecia se disseminar pela infecção de adultos. A partir da testagem de crianças que viviam em áreas com grandes taxas de contágio, em contato com pessoas que contraíram a doença ou apresentaram sintomas gripais, conseguimos demonstrar que crianças podem se infectar tanto quanto adultos e ter uma carga viral alta", afirmaram os autores da pesquisa, ambos pediatras do Hospital Geral de Massachusetts.

Argumento pesou para decisão da volta às aulas

O argumento de que crianças transmitiriam menos a doença pesou na decisão de se reabrir escolas em diferentes países. Alguns deles tiveram experiências bem-sucedidas, como a Alemanha e a Dinamarca, enquanto outros viram novos surtos eclodirem após falhas nas medidas sanitárias de prevenção, como Israel. A descoberta, afirmam os autores, indica que o retorno às atividades pode se tornar um vetor de transmissão do coronavírus dentro e fora dos muros da escola, afetando funcionários, professores e a família dos estudantes.

No Rio : Especialista critica volta às aulas, colégios particulares comemoram e escolas públicas reclamam de despreparo

"Se precauções adequadas não forem adotadas quando os alunos voltarem à escola, as crianças podem causar a próxima onda da pandemia de Covid-19", alertaram Fasano e Lael. "Nosso estudo demonstra que o monitoramento de sintomas, incluindo a checagem de temperatura, não são confiáveis para identificar a doença em crianças".

As medidas preventivas devem contemplar a testagem rígida e frequente de todos os alunos, acompanhado do uso obrigatório de máscaras, uma rotina regrada de higienização das mãos, o distanciamento social, a limitação de aglomerações e a adoção de um sistema híbrido, que mescle aulas presenciais e remotas.

Sem esse roteiro canônico, reforçam os pesquisadores, o risco de a pandemia persistir e mais pessoas, incluindo familiares, serem expostas ao coronavírus com o retorno das aulas presenciais é “significativo”, o que é agravado em regiões mais pobres e vulneráveis ao patógeno: 51% das crianças positivas para o coronavírus vinham de bairros menos favorecidos, onde famílias tendem a viver em cômodos menores e em vizinhanças densamente habitadas.

A testagem, no entanto, é um desafio mundo afora — especialmente no Brasil. Segundo levantamento do site Worldometer, que compila diferentes bases de dados ao redor do globo, o país figura na 68ª posição no índice de testes por milhão de habitantes. O desempenho é pior do que países vizinhos como Chile e Peru, e até de outros criticados pela condução da crise, como a Bielorrússia e a Rússia.

O mundo já passou de 22 milhões de casos, segundo um levantamento da Johns Hopkins University (EUA). Se a abordagem epidemiológica deixou de lado a capacidade de contágio e disseminação da Covid-19 por crianças, isso significa que a subnotificação ainda é maior do que se espera?

"É plausível, uma vez que já sabíamos que estávamos olhando apenas para o topo do iceberg por testarmos apenas as pessoas com sintomas severos. Projeta-se um número real de casos de 10 a 20 vezes maior do que o total de diagnósticos confirmados", afirmaram os pesquisadores. "Para ter uma real dimensão da pandemia, deveríamos conduzir testagens em massa independentemente de sintomas, o que ainda não é possível pela falta de testes e os custos envolvidos. Nossos dados sugerem que há uma imensidão de casos não detectados que podem ajudar a espalhar o coronavírus".

Síndrome multissistêmica

O estudo também se debruçou sobre a Síndrome Inflamatória Multissistêmica Pediátrica (SIM-P). Considerada uma complicação da Covid-19, a condição médica não é restrita a pacientes que contraíram o vírus, mas cientistas têm apontado uma correlação entre o aumento no número de casos da chamada SIM-P e a pandemia. A chamada “tempestade imunológica”, causada pela resposta imune desproporcional do corpo humano à infecção pelo coronavírus, atrelada ao agravamento da Covid-19, desencadeia uma reação inflamatória em crianças.

O trabalho da Escola Médica de Harvard permitiu cruzar a quantidade de carga viral e de anticorpos de ação de médio e longo prazos para o coronavírus para compreender o comportamento da síndrome. Ao contrário das crianças positivas para o coronavírus, não eram os índices de carga viral os mais altos encontrados naquelas diagnosticadas com a SIM-P, mas, sim, os de anticorpos.

Segundo explica o estudo, a resposta imunológica hiperativa, por meio de um processo denominado ativação macrofágica, dá início ao processo inflamatório. A SIM-P pode provocar problemas cardíacos graves, como a insuficiência cardíaca aguda, além de choque. No Brasil, segundo o Ministério da Saúde, foram reportados 117 casos e novos óbitos pela síndrome.

Os autores lembram que, no caso dos pacientes adultos, depois do pulmão, o coração é o órgão preferido do coronavírus. Os pesquisadores sustentam que é preciso maior investigação da síndrome pela ciência a fim de compreender melhor a Covid-19.

"A SIM-P pode ser bem grave em crianças e se manifestar muitas semanas após elas manifestarem um quadro leve ou até mesmo assintomático de Covid-19. Não parece haver fatores de risco claros no desenvolvimento da síndrome, e essa é a principal razão para limitarmos o contágio do coronavírus entre crianças", alertaram Fasano e Lael.

O estudo aprofundado da SIM-P pode, ainda, aprimorar o desenvolvimento de medicamentos, tratamentos e até mesmo das vacinas contra o patógeno.

"Nós demonstramos que essa resposta desregulada e hiperativa dos anticorpos aparenta estar associada com quadros graves da síndrome. Isso traz indícios do que poderia causar a SIM-P. O sistema imune adquirido parece estar acelerado. Isso é de suma importância, uma vez que vacinas buscam estimular uma resposta imunológica", disseram os autores. "Durante o desenvolvimento das vacinas, devemos monitorar atentamente as crianças por complicações da SIM-P à medida em que os imunziantes forem lançados."

Essa resposta imune não é identificada, por outro lado, em pessoas mais velhas, conforme mostra o estudo de Harvard. Por isso, a SIM-P, ponderam Fasano e Lael, não pode ser tratada da mesma forma que um adulto com Covid-19. Um caminho promissor, segundo os médicos, pode ser o uso de antivirais para mitigar os riscos da síndrome em crianças que contraíram a Covid-19.