Multidões despreocupadas, sucateamento da saúde e hábitos culturais: o que explica o avanço da epidemia na Espanha
País supera China e se torna o 3º com mais casos oficiais no mundo; governo, oposição e especialistas divergem nas causas, tão variadas como a ideologia de quem opina
Alessandro Soler, especial para O Globo
30/03/2020 - 17:34
/ Atualizado em 31/03/2020 - 14:55
MADRI - No dia em que
a Espanha ultrapassou a China
, tornando-se a terceira nação com mais casos oficiais de Covid-19, atrás só de Estados Unidos e Itália, a pergunta que todo mundo por aqui repete toda hora é: o que aconteceu? As explicações para a escalada oferecidas por governo, oposição e especialistas são variadíssimas, quase sempre ligadas à ideologia de quem opina. Possivelmente, todos têm alguma razão, e só há uma certeza: a maior emergência sanitária que a Espanha e o mundo enfrentam em mais de um século tem múltiplas causas.
Nos últimos dias, políticos conservadores, por exemplo, têm repetido que a realização das marchas de 8 de março pelo Dia Internacional da Mulher foi determinante para a disparada no número de contágios. Tema caro à coalizão progressista que governa o país, a defesa dos direitos das mulheres se sobrepôs aos crescentes alertas que chegavam da China, naquele momento, sobre a necessidade de evitar multidões.
Menos mencionados são outros eventos ocorridos naqueles dias. Partidas da Liga Espanhola de futebol por todo o país, um show com grande afluência de público com a estrela da música Isabel Pantoja em Madri, e até mesmo a convenção do partido de extrema direita Vox num megaginásio esportivo lotado na capital espanhola tiveram lugar livremente. Alguns dias antes, milhares de espanhóis haviam viajado sem qualquer alerta ou restrição a Milão, epicentro da epidemia na Itália, para assistir ao jogo Atalanta x Valencia pela Champions.
Com o bom tempo do fim do inverno, as famosas
terrazas
presentes nas principais cidades espanholas estiveram cheias de pessoas bebendo cerveja e confraternizando por vários fins de semana seguidos, entre fevereiro — quando China e Itália já viviam uma escalada de contágios — e a decretação do estado de emergência e do confinamento pelo premier Pedro Sánchez, em 13 de março.
Por tudo isso, o pesquisador Miguel Álvarez Peralta, da Universidade Complutense de Madri, diz ser falacioso culpar só as marchas das mulheres.
— Todos os países europeus, salvo a Itália, celebraram o 8 de março. Berlim, Londres, Paris, Zurique... Não é por isso que temos uma curva pior de contágios. Se nossa taxa de mortalidade é quase tão alta quanto a da Itália, muito maior que a da Alemanha, é porque a Alemanha tem o triplo de camas de cuidados intensivos por habitante, e os hospitais deles não estão à beira do colapso. É isso que faz disparar a taxa — sentenciou.
Se a percepção é de que houve demora no isolamento coletivo, dados da Organização Mundial da Saúde (OMS) mostram que a Espanha tinha melhores índices que Itália ou França no dia em que se confinou. Aqui, a medida entrou em vigor em 14 de março, quando se acumulavam 4.231 casos e 120 mortos. Quando a França se trancou em casa, em 23 de março, eram 6.573 contagiados e 148 falecidos. Já a Itália, ao decretar sua quarentena nacional em 10 de março, havia alcançado 9.172 doentes e 463 vítimas fatais.
— Não foi uma resposta particularmente tardia. Outros países tiveram uma progressão similar ou até mais rápida e não isolaram populações inteiras. O pior problema acontece dos hospitais para dentro: os cortes orçamentários do governo anterior enxugaram demais as equipes, inviabilizaram os estoques de materiais de proteção como máscaras, luvas e jalecos isolantes. Muitos médicos adoeceram por isso e ficaram fora de combate. As UTIs em algumas regiões estão perto do esgotamento completo — enumerou Miquel Alonso, médico catalão com mestrado em Biomedicina no prestigioso hospital Johns Hopkins, nos EUA.
Outra crítica ao governo que tem sido disseminada refere-se à ausência de diagnósticos. Segundo o jornal britânico Financial Times publicou em 25 de março, porém, só a Suíça supera mundialmente a Espanha em testes: 8 mil por cada milhão de habitantes lá contra quase 7 mil cá. Bem atrás vêm Coreia do Sul — frequentemente elogiada pela resposta à pandemia — e Alemanha.
— Estamos testando bem e dentro dos critérios recomendados pela OMS. Não há subnotificação — disse Fernando Simón, responsável pelo controle de epidemias no Ministério da Saúde, antes de dar, ele mesmo, positivo para o coronavírus nesta segunda-feira.
Outro país frequentemente tido como modelo na contenção à Covid-19, o Japão, testa muito menos: coisa de 50 testes por milhão de habitantes. Lá, no entanto, a curva de casos se estabilizou em pouco mais de 1,6 mil, com algo menos de 50 mortes. Além das 13,4 camas de hospital por mil habitantes, contra três da Espanha, e de uma estratégia de isolar surtos com rapidez, mantendo os doentes em estrita quarentena, a bióloga espanhola Ángela Ares Pita, pesquisadora na Universidade de Okinawa, no Japão, dá outra pista do que poderia explicar isso:
— No trabalho, intensificaram-se certas precauções, como o uso de álcool em gel. Pedem que aumentemos a distância e que todas as reuniões sejam on-line. E, simplesmente, todo mundo obedece. O que ocorre é que eles, culturalmente, não são como os mediterrâneos: não se abraçam, não se tocam. São extremamente disciplinados e, sem que o governo os obrigue, cumprem as medidas. Assim estão freando a epidemia.