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Economia

Empresas se adaptam ao 'home office', mas desigualdade no mercado de trabalho deve subir

Em 32% das empresas, diz pesquisa, a quarentena teve impacto mínimo por causa do trabalho em casa. Modalidade pode ir além da pandemia
Conforto. Aline Mantovan trabalha em casa e pretende continuar após a pandemia Foto: Agência O Globo
Conforto. Aline Mantovan trabalha em casa e pretende continuar após a pandemia Foto: Agência O Globo

RIO - Em pouco tempo após o início da pandemia do novo coronavírus , setores econômicos conseguiram pôr quase 100% do efetivo trabalhando em casa, quando o isolamento social dos que não atuam em atividades essenciais foi imposto.

Empresas de tecnologia tomam a dianteira nessa operação remota, mas estudo da Mercer, consultoria global de recursos humanos, mostra que em 32% das grandes empresas a quarentena teve impacto mínimo na operação justamente por causa da prática do home office .

Isso ocorreu nas áreas de seguros, financeiro e de alta tecnologia. Na área de serviços não financeiros, o trabalho foi pouco afetado para 50% das companhias.

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— Teve que ser da noite para o dia, cerca de 15% das que ofereceram home office não tinham essa alternativa antes da pandemia. Foi aos trancos e barrancos, de mandar para casa primeiro, depois o desktop, aos poucos a ergonomia, internet, banda larga —afirma Rafael Ricarte, líder de produtos de carreira da Mercer Brasil.

Os que conseguem trabalhar em casa são mais escolarizados, a maioria com superior completo, o que pode piorar a distribuição de renda no mercado de trabalho, alertam especialistas. Bruno Ottoni, pesquisador da Consultoria IDados, cita os EUA.

Lá, em abril, trabalhadores do comércio, serviços e indústria foram os mais prejudicados. No Brasil, os dados vão até março, quando a quarentena começou.

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—Tiveram dois conjuntos de trabalhadores que não foram muito prejudicados. Os que atuam em setores essenciais, como entrega, supermercados, transportes. E o pessoal superqualificado que conseguiu fazer a transição para o trabalho remoto. Quem está sofrendo é meio de distribuição, comércio, serviços e indústria. Eles estão parados, sem perspectiva.

Ao jogar essa camada intermediária para o desemprego, a desigualdade aumenta.

— É possível exacerbar a já expressiva desigualdade.

O home office já era usado para reter talentos e passou a ser opção para boa parte das empresas. Elas reavaliam a necessidade de ter 95% do pessoal em escritório se estão conseguindo operar remotamente.

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— Surge a questão da necessidade de ocupar quatro andares com escritórios — diz Ricarte.

Nos EUA, o líder do Facebook, Mark Zuckerberg, disse na semana passada que vai incentivar o home office e prevê 50% do quadro funcional trabalhando remotamente até 2030. No Brasil, digitais como XP Investimentos, Nubank e Twitter querem manter empregados até dezembro em casa e deixar para eles a opção de trabalhar assim quando o mundo voltar ao normal.

— Em dois dias, 95% estavam em home office , hoje estão 98%. Conseguimos fazer reuniões digitais com a empresa inteira, o que não era possível de maneira presencial — diz Guilherme Sant’Anna, head de Gente & Gestão da XP.

Com 2.700 funcionários, 90% deles com superior completo, Sant’anna diz que as pessoas estão percebendo os ganhos de mobilidade, de poder escolher onde morar:

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— Essa condição abriu a cabeça das pessoas, de ganhar as horas que perdiam no trânsito, começam a pensar no bairro que gostariam de morar sem se preocupar em quanto tempo vão levar até lá, podem ficar mais próximas das famílias. O mundo anterior não volta.

Marcos Mendes, diretor de Gente e Gestão da Oi, já pôs 84% do efetivo em casa: 10,3 mil empregados. Antes da quarentena, só 22% trabalhavam alguns dias em casa:

—Mandamos o equipamento da companhia para a casa da pessoa, formalizamos acordo com sindicato. A virada se deu em uma semana.

Segundo Mendes, não há pressa para voltar ao trabalho nos escritórios. O home office vai ser estendido por mais 30 dias. Quando a pandemia acabar, a tele sediada no Rio quer no mínimo dobrar o efetivo em casa. As contratações são virtuais.

A assistente administrativa da Oi Daiana Santos da Silva foi contratada em abril. Formada em Assistência Social, mora em Campo Grande, no Mato Grosso do Sul:

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— É bem diferente. Num primeiro momento, a gente fica surpreso. Mas há ferramentas, cursos profissionalizantes e suporte da empresa.

Nova rotina

A economista Aline Mantovan, da área de Costumer Experience da Rico, da XP, está desde março em casa. Com dois filhos, Raul, de 6 anos, e Benjamin, de 2, divorciada, quer trabalhar mais em casa quando a pandemia passar. Perdia duas horas no trânsito, em São Paulo.

— É um tempo que posso dedicar a alguma atividade física, o que não era possível antes.

Mais juntos. Angelica Bernardes sempre reserva tempo exclusivo para os filhos Foto: Arquivo pessoal
Mais juntos. Angelica Bernardes sempre reserva tempo exclusivo para os filhos Foto: Arquivo pessoal

Aline usa a primeira parte da manhã, enquanto as crianças dormem, para adiantar o trabalho, e continua à tarde, enquanto o filho estuda on-line.

No Nubank, segundo Os Fuentes, VP e head global de Aquisição de Talentos, em 24 horas, todo o pessoal estava trabalhando remotamente. Angélica Bernardes, assistente executiva do Nubank, é uma das 2,5 mil funcionárias que passaram a trabalhar em casa. Criou uma rotina para dar conta do trabalho e dos filhos:

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— A rotina nem sempre funciona, mas preciso reservar um tempo só para as crianças. Senão me demandam o dia inteiro. Almoçamos sempre juntos, algo que nunca fazíamos.

O economista Daniel Duque, da Fundação Getulio Vargas (FGV), também espera aumento da desigualdade. Ele lembra que os empregos mais protegidos são aqueles que exigem qualificação, com acesso ao trabalho e à produção por meio digitais:

— Esse trabalho exige conhecimento de software, de programas que são valorizados. Isso vai gerar agravamento grande da desigualdade.

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Para Duque, grandes empresas não vão voltar totalmente aos escritórios, sobretudo nos grandes centros, onde o custo imobiliário é alto. Assim, a contratação sai do eixo Rio-São Paulo.

— É vantajoso e as empresas não perdem produtividade — diz Mendes, da Oi. — Pode existir uma excelente pessoa em Manaus que não tinha condições de vir para o Rio. Já estamos fazendo isso. A Covid-19 antecipou a transformação do trabalho.

Lições aprendidas no 'home office'

Rotina e horários

Uma das principais dificuldades de quem trabalha em casa é delimitar uma fronteira entre a vida profissional e a pessoal. É importante manter uma rotina, com horários definidos para o trabalho, atividade física, tarefas domésticas, cuidados com filhos e lazer. Para aumentar a concentração, escolha um espaço para o trabalho e afaste distrações como a TV.

Nada de pijama

Outro ritual que pode ajudar é tomar banho e trocar de roupa antes de começar o expediente, ainda que seja possível adotar indumentária mais despojada. Isso é ainda mais importante para quem precisa participar de reuniões por videoconferência.

Ergonomia

Muita gente não tem em casa a mesma estrutura do escritório. Cadeiras inadequadas podem provocar dor muscular e na coluna. Almofadas podem ajudar na postura. Preocupado com isso, a fintech Nubank enviou cadeiras ergonômicas de escritório a mil empregados em home office.

Contratação

Empresas de serviços que se surpreenderam com a manutenção e até ganhos de produtividade com o home office devem passar a considerar a contratação de talentos fora das cidades em que estão sediadas, mesmo após a pandemia, como já anunciou o Facebook. Essa tendência deve abrir novas oportunidades de trabalho.