BRASÍLIA - O Órgão de Apelação da Organização Mundial do Comércio (OMC), última instância de disputas comerciais entre países e mecanismo fundamental para a resolução de conflitos, ficará paralisado a partir de 11 de dezembro. Será a primeira vez em 22 anos de existência do tribunal. Esse braço da OMC perderá dois de seus árbitros e, por conta disso, será a impedido de funcionar com apenas um juiz. O mínimo exigido pela legislação são três juízes. Não há perspectiva de indicação dos substitutos no curto prazo.
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A paralisia no órgão foi causada por um boicote implacável dos Estados Unidos à nomeação de novos árbitros, e essa situação afeta diretamente o Brasil, um dos países mais ativos na OMC. Segundo fontes com conhecimento do assunto, o bloqueio americano, além de forçar uma reforma no sistema de solução de controvérsias, também atinge a aprovação do orçamento da OMC para 2020.
Sem acordos multilaterais
O quadro é ainda mais preocupante diante de um acirramento das políticas protecionistas em grandes economias, sobretudo EUA e China, em meio à guerra comercial que preocupa os mercados. Além disso, nos últimos anos, a OMC não coordenou nenhum acordo multilateral de grande escopo — as negociações da Rodada de Doha estão paralisadas desde 2015, quando os membros do grupo negociaram o acordo de Bali, que tratava apenas de facilitação do comércio. Então, na prática, a solução de disputas comerciais entre países é a principal função da OMC hoje.
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Há pelo menos três casos de interesse brasileiro que deverão ser afetados por esse estado de paralisia: uma nova ação contra os subsídios canadenses à fabricante de aviões Bombardier, concorrente da Embraer; outra contra a Índia, por incentivos concedidos a produtores de açúcar; e um terceiro caso envolvendo a Indonésia, que tem a carne de frango como centro da disputa.
São contenciosos em que o Brasil foi vitorioso nos painéis (comitês de arbitragem), que podem ou não ser questionados no Órgão de Apelação. O problema, de acordo com essas fontes, é que os países perdedores tendem a usar como estratégia recorrer a uma instituição que não tem perspectiva de voltar a funcionar tão cedo. O objetivo é protelar o cumprimento das determinações da OMC. Estatisticamente, em 75% dos casos, quem perde entra com recurso.
Eduardo Saldanha, advogado e professor da Escola de Direito da PUC do Paraná, explica que uma das razões desse bloqueio dos EUA é que, em plena guerra comercial com a China, os americanos perderam uma ação contra os chineses na OMC e também o recurso que levaram ao Órgão de Apelação. Com isso, a China foi autorizada a retaliar os EUA em cerca de US$ 7 bilhões.
— O sistema de solução de controvérsias atual é o mais efetivo da História, e essa paralisação afeta o coração da OMC — completa.
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Recentemente, os EUA reclamaram dos salários dos juízes do Órgão de Apelação. Argumentaram que o pagamento para os árbitros, que era de US$ 7 mil por mês em 1995, quando o organismo foi criado, subiu para U$ 9,4 mil em 2019. Queixaram-se, ainda, dos valores das diárias e da ajuda de custo para alimentação e alojamento.
Na verdade, os americanos querem reformas na OMC e seu principal alvo é a China. Alegam que os chineses dão subsídios industriais e exigem a transferência de tecnologia de empresas que quiserem se instalar no país asiático. Se depender do presidente Donald Trump, essas práticas passarão a ser consideradas ilegais na OMC. Hoje, há um vácuo legal em relação a essas questões.
— O sistema de solução de controvérsias da OMC é o mecanismo mais importante para solucionar disputas no direito internacional. A paralisia do Órgão de Apelação diminui a previsibilidade — diz Welber Barral, ex-secretário de Comércio Exterior e, atualmente, “panelista” da OMC.
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Ele lembra que os brasileiros estão envolvidos em 10% dos casos na OMC. Historicamente o Brasil é o país em desenvolvimento que mais litiga, ao lado da Índia.
— O Órgão de Apelação revisa as decisões do painel. Ou você aceita, ou recorre — acrescenta Barral.
Reparação no algodão
Um caso bem-sucedido e emblemático envolvendo o Brasil foi numa ação contra os subsídios concedidos pelos EUA aos produtores de algodão. Há cerca de cinco anos, após os EUA recorrerem, o Órgão de Apelação autorizou o governo brasileiro a retaliar os americanos não apenas comercialmente, subindo o Imposto de Importação de produtos com origem lá. Ou seja, o Brasil poderia cassar patentes e direitos autorais em todas as áreas, incluindo medicamentos, livros e até filmes de Hollywood.
Diante disso, Washington concordou em repassar a cotonicultores brasileiros cerca de US$ 800 milhões para ajudar na reestruturação do setor.
O Brasil também conseguiu que os EUA retirassem uma sobretaxa imposta ao suco de laranja nacional. Outro exemplo foi uma vitória contra a União Europeia em dois momentos: questionando os subsídios ao açúcar e no impasse sobre a exportação de peito de frango desossado.