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Cultura Música Bossa Nova 60 anos

Com jeito diferente de tocar, João Gilberto quis reduzir violão à essência

Violonista baiano redefiniu a batida perfeita de maneira discreta e obsessiva
João Gilberto em foto de 1960, dois anos depois de lançar o compacto que mudaria tudo Foto: Arquivo
João Gilberto em foto de 1960, dois anos depois de lançar o compacto que mudaria tudo Foto: Arquivo

RIO — No princípio era o samba — e o samba-canção, a influência do bolero sobre o Brasil pandeiro. Até que Deus disse: faça-se a bossa. Nada. A narrativa mítica da criação da batida da bossa nova que nasce daí não tem grandes pirotecnias. Pelo contrário. Ela se deu na discrição (bem bossanovista) de um banheiro em Diamantina, onde João praticava obsessivamente, buscando aprimorar aquele jeito diferente de tocar violão que desenvolvia. Uma tentativa de reduzir o violão brasileiro — mais do que isso, toda a bagagem rítmica do país — à sua essência, como explica Joyce:

— Ele deu uma sintetizada numa coisa que era meio barroca no violão brasileiro, ficou uma forma muito preciosa de tocar. João é a perfeição. Quando ele pega uma música de que gosta, fica tocando um trilhão de vezes. Vi isso há quase 50 anos, imagino que seja assim até hoje, ele deve ter até aperfeiçoado — arrisca Joyce.

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Uma perfeição que vem exatamente dessa repetição, acredita a cantora. Ela viu de perto o violão de João em ação em 1970, no México. Na época, ela fazia parte de um grupo de jovens artistas brasileiros que tinha viajado para mostrar a música brasileira durante a Copa do Mundo.

— João estava morando lá e foi nos visitar, fazer aquela visita que ele faria anos depois aos Novos Baianos — brinca Joyce. — Éramos uma garotada que estava babando vendo ele tocar dias seguidos, porque ele não parava nunca. Sambas como “De conversa em conversa”, ele chegava naquele final e ficava horas, dias abrindo vozes com a gente: “... que não sou limão” (canta) .

VERISSIMO: O berço da bossa

Menescal lembra o impacto que aquela batida causou quando chegou à sua turma de jovens músicos fascinados pelo jazz:

— A gente gostava de samba, as coisas de Noel e tal, mas não conhecia muito o samba de morro. Então a gente não sabia tocar samba direito, tocava de uma forma pobre, acabava achando aquilo pobre. Mas quando veio a batida de João, abriu tudo pra gente. Era uma batida baseada no tamborim, simples. Era tudo que a gente precisava. Aí depois era só fazer as melodias bonitas.

Havia antecedentes para o ritmo que João sintetizou em seu violão — como o piano sincopado de João Donato. Ruy Castro, autor do livro “Chega de saudade — A história e as histórias da bossa nova” defende uma tese de que a bossa nova é apenas a continuação de um samba de bossa que o Brasil produz pelo menos desde 1929, com “Jura”, de Sinhô — e depois com “Doralice”, “Morena boca de ouro”, “Bolinha de papel”, ou seja, sambas que depois o baiano viria a gravar. Segundo Castro, “o que João fez foi dar a esses sambas uma... bossa nova”.

É possível que as sugestões daquela batida já estivessem insinuadas no ar. Mas foi João que as captou e as amarrou de maneira definitiva a partir de sua gravação de “Chega de saudade”, de Tom Jobim e Vinicius de Moraes — primeiro no disco de Elizeth Cardoso, “Canção do amor demais”, depois, e de forma mais evidente, no compacto que trazia de um lado a canção-ícone, de outro “Bim bom”. Esta, uma das raras composições suas, era, de alguma forma, uma aula metalinguística da batida minimalista da bossa — “Bim bom/ Bim bim bom/ É só isso o meu baião/ E não tem mais nada não”.

O ritmo de João — e seu canto, que não só era parte integrante do balanço do baiano, mas também um manifesto em favor de uma nova forma, mais cool, de interpretar a música popular brasileira — tomou de assalto a turma de Menescal, Nara Leão, Carlos Lyra e outros que ergueriam a bandeira da bossa nova. Mas foi além, desembocando no violão de Paulinho da Viola, Chico Buarque e João Bosco, no disco “Domingo” (de Caetano Veloso e Gal Costa), em “Felicidade vem depois” (de Gilberto Gil). A própria Tropicália chegou a ser definida por Caetano como uma radicalização, um passo à frente em relação às transformações propostas por João — ecos do violão forjado num banheiro de acústica mágica em Diamantina.