RIO — No princípio era o samba — e o samba-canção, a influência do bolero sobre o Brasil pandeiro. Até que Deus disse: faça-se a bossa. Nada. A narrativa mítica da criação da batida da
bossa nova
que nasce daí não tem grandes pirotecnias. Pelo contrário. Ela se deu na discrição (bem bossanovista) de um banheiro em Diamantina, onde João praticava obsessivamente, buscando aprimorar aquele jeito diferente de tocar violão que desenvolvia. Uma tentativa de reduzir o violão brasileiro — mais do que isso, toda a bagagem rítmica do país — à sua essência, como explica Joyce:
— Ele deu uma sintetizada numa coisa que era meio barroca no violão brasileiro, ficou uma forma muito preciosa de tocar. João é a perfeição. Quando ele pega uma música de que gosta, fica tocando um trilhão de vezes. Vi isso há quase 50 anos, imagino que seja assim até hoje, ele deve ter até aperfeiçoado — arrisca Joyce.
Uma perfeição que vem exatamente dessa repetição, acredita a cantora. Ela viu de perto o violão de João em ação em 1970, no México. Na época, ela fazia parte de um grupo de jovens artistas brasileiros que tinha viajado para mostrar a música brasileira durante a Copa do Mundo.
— João estava morando lá e foi nos visitar, fazer aquela visita que ele faria anos depois aos Novos Baianos — brinca Joyce. — Éramos uma garotada que estava babando vendo ele tocar dias seguidos, porque ele não parava nunca. Sambas como “De conversa em conversa”, ele chegava naquele final e ficava horas, dias abrindo vozes com a gente: “... que não sou limão”
(canta)
.
Menescal lembra o impacto que aquela batida causou quando chegou à sua turma de jovens músicos fascinados pelo jazz:
— A gente gostava de samba, as coisas de Noel e tal, mas não conhecia muito o samba de morro. Então a gente não sabia tocar samba direito, tocava de uma forma pobre, acabava achando aquilo pobre. Mas quando veio a batida de João, abriu tudo pra gente. Era uma batida baseada no tamborim, simples. Era tudo que a gente precisava. Aí depois era só fazer as melodias bonitas.
Havia antecedentes para o ritmo que João sintetizou em seu violão — como o piano sincopado de João Donato. Ruy Castro, autor do livro “Chega de saudade — A história e as histórias da bossa nova” defende uma tese de que a bossa nova é apenas a continuação de um samba de bossa que o Brasil produz pelo menos desde 1929, com “Jura”, de Sinhô — e depois com “Doralice”, “Morena boca de ouro”, “Bolinha de papel”, ou seja, sambas que depois o baiano viria a gravar. Segundo Castro, “o que João fez foi dar a esses sambas uma... bossa nova”.
O álbum está mergulhado no romantismo do samba-canção, apesar da modernidade que já se mostrava nas canções de Tom e Vinicius. Mas é ali que "Chega de saudade". E o violão de João Gilberto aparece pela primeira vez, anunciando o futuro.
"Chega de saudade", João Gilberto (1959):
Disco-manifesto do movimento, o álbum é o primeiro do baiano. Ali, ele desenvolve a batida apresentada ao mundo no compacto lançado no ano anterior, juntando os antigos (Ary Barroso, Zé da Zilda) com os garotos (Carlos Lyra, Tom Jobim). E sua "Bim bom" sintetiza tudo.
"Rapaz de bem", Johnny Alf (1961)
As harmonias do pianista o credenciaram como um dos precursores mais importantes da bossa nova. Mas Alf lançou esse seu primeiro LP apenas depois da explosão inicial do movimento. Mesmo assim, canções como "Ilusão à toa" e a faixa-título continuavam (e continuam) modernas.
"A bossa nova de Roberto Menescal", Roberto Menescal (1962)
O compositor, militante de primeira hora do movimento, mostra músicas como "Você" e "A morte de um deus de sal" (ambas com Ronaldo Bôscoli), ao lado de obras de outros artistas, como "Bolinha de papel" (Geraldo Pereira).
"Você ainda não ouviu nada!", Sérgio Mendes & Bossa Rio (1963).
O pianista preparou este clássico da bossa instrumental quando começava a trilhar sua carreira de fenômeno do tropical-jazz nos Estados Unidos. No disco, ele injeta vigor irresistível em "Nanã" e "Garota de Ipanema", entre outras.
"Vinicius & Odette Lara", Vinicius de Moraes e Odette Lara (1963)
Vinicius de Moraes estreia como cantor ao lado de Odette Lara, interpretando exclusivamente parcerias suas com Baden Powell. O disco inclui clássicos como "Berimbau", "Samba em prelúdio" e "Samba da benção".
"Bossa balanço balada", Sylvia Telles (1963):
A cantora que melhor soube fazer a transição do antigo samba-canção romântico para a moderna bossa nova reúne aqui os dois universos. Ora mais derramada ora mais contida, ela passeia por um repertório que inclui "Rio", "Samba do avião", "Insensatez" e "Vagamente".
"The composer of desafinado plays", Tom Jobim (1963)
Gravado nos Estados Unidos, com arranjos do maestro alemão Claus Ogerman, este foi o primeiro disco no qual Tom, solo, lançou seu olhar sobre a própria obra. Indispensável, portanto. Estão lá "Garota de Ipanema", "Corcovado", "Samba de uma nota só", "Chega de saudade"...
"Muito à vontade", João Donato (1963):
O pianista e compositor sempre acompanhou a bossa nova pelas beiradas, com uma obra independente e personalíssima. Assim, soube ampliar suas fronteiras. É o que provam "Vamos nessa", "Sambou... sambou" e "Olhou pra mim" (esta de Ed Lincoln e Silvio César).
"Nara", Nara Leão (1964)
Cantora-símbolo do movimento, Nara já estava prestando atenção no chamado samba de morro quando estreou em LP. O disco reflete essa inquietude da artista ao unir, na voz bossa nova de Nara, compositores como Lyra, Cartola, Vinicius, Nelson Cavaquinho, Baden e Zé Ketti.
Moderno, traz a segunda geração da bossa nova representada pela mulher que sintetizava essa modernidade. Com produção de Menescal e arranjos orquestrais de Eumir Deodato, traz a primeira safra de composições de Edu Lobo, Francis Hime e Marcos Valle.
"Getz/ Gilberto", Stan Getz, João Gilberto e Tom Jobim (1964)
Só o fato de trazer a gravação de "Garota de Ipanema" que conquistou os Estados Unidos, com Astrud Gilberto, já bastaria para inclur este disco aqui. Mas há ainda as interpretações para pérolas como "Só danço samba" e "Doralice".
"Pobre menina rica", Carlos Lyra e Vinicius de Moraes (1964)
O disco traz clássicos do musical da dupla, como "Primavera" e "Sabe você?". O álbum captura compositor e letrista em ótima forma. O próprio Lyra o definiu como "um dos momentos mais ricos de nossa parceria — e de minha carreira".
"O compositor e o cantor", Marcos Valle (1965)
Em seu segundo disco, todo de parcerias com seu irmão Paulo Sérgio Valle, Marcos Valle gravou músicas como "Preciso aprender a ser só", "Samba de verão" e "Gente", dando sangue (ainda mais) novo à bossa nova. Depois, ele trilharia outros rumos.
É possível que as sugestões daquela batida já estivessem insinuadas no ar. Mas foi João que as captou e as amarrou de maneira definitiva a partir de sua gravação de “Chega de saudade”, de Tom Jobim e Vinicius de Moraes — primeiro no disco de Elizeth Cardoso, “Canção do amor demais”, depois, e de forma mais evidente, no compacto que trazia de um lado a canção-ícone, de outro “Bim bom”. Esta, uma das raras composições suas, era, de alguma forma, uma aula metalinguística da batida minimalista da bossa — “Bim bom/ Bim bim bom/ É só isso o meu baião/ E não tem mais nada não”.
O ritmo de João — e seu canto, que não só era parte integrante do balanço do baiano, mas também um manifesto em favor de uma nova forma, mais cool, de interpretar a música popular brasileira — tomou de assalto a turma de Menescal, Nara Leão, Carlos Lyra e outros que ergueriam a bandeira da bossa nova. Mas foi além, desembocando no violão de Paulinho da Viola, Chico Buarque e João Bosco, no disco “Domingo” (de Caetano Veloso e Gal Costa), em “Felicidade vem depois” (de Gilberto Gil). A própria Tropicália chegou a ser definida por Caetano como uma radicalização, um passo à frente em relação às transformações propostas por João — ecos do violão forjado num banheiro de acústica mágica em Diamantina.