Política

Ação do CNJ dá liberdade a loucos atrás das grades

Mutirão ocorreu quatro meses depois de série do GLOBO. Dois já foram soltos; 34 aguardam solução

Presos no Hospital Psiquiátrico Valter Alencar
Foto: Agência O Globo / André Coelho
Presos no Hospital Psiquiátrico Valter Alencar Foto: Agência O Globo / André Coelho

BRASÍLIA — Um mutirão carcerário do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) resultou na libertação de pessoas com transtornos mentais mantidas presas no Piauí sem qualquer acusação formal e até mesmo sem a tramitação de processos judiciais. Depois da ação do CNJ, encerrada na última sexta-feira, a Justiça do Piauí pôs em liberdade os dois primeiros detentos com transtornos mentais. A equipe do conselho ainda cobrou dos juízes do estado uma solução rápida para as outras 34 pessoas e encaminhará o relatório final à Corregedoria Nacional de Justiça, para apuração sobre a responsabilidade de magistrados. Eles poderão ser punidos administrativamente em razão do descaso com os internos.

O mutirão nas unidades prisionais de Teresina ocorreu quase quatro meses depois de O GLOBO denunciar, em série de reportagens, a prisão ilegal de doentes mentais absolvidos pela Justiça. A realidade dos detentos na capital piauiense foi revelada pelo jornal em 18 de fevereiro. Os mesmos casos de prisões ilegais no Hospital Penitenciário Valter Alencar e na Colônia Agrícola Major César Oliveira, visitados pela reportagem, estão listados no relatório final do CNJ sobre a situação processual de 36 detentos das duas unidades, que ficam lado a lado.

Um levantamento inédito feito pelo GLOBO mostrou que pelo menos 800 brasileiros com transtornos mentais, em cumprimento das chamadas medidas de segurança, cumprem pena em presídios comuns, em vez de receberem atendimento psiquiátrico adequado. Nos manicômios judiciários, que deveriam oferecer tratamento médico, a realidade também é de detenções ilegais e de tortura, constatada pelo Subcomitê de Prevenção da Tortura (SPT), vinculado à ONU. Uma das piores realidades dentre os hospitais de custódia é a do Valter Alencar, a poucos quilômetros de Teresina.

CNJ não encontra processos

A reportagem encontrou presos provisórios e em isolamento há 22 anos, sem exame de insanidade mental, sem a decretação da medida de segurança — instrumento previsto em lei após a absolvição de um suposto ato criminoso — e até mesmo sem processo na Justiça. Nas “enfermarias”, presos com transtornos mentais dividem o espaço com detentos que receberam outros diagnósticos, como Aids e hanseníase. Nas varas de Justiça, a reportagem descobriu que alguns processos simplesmente desapareceram.

Foi esta a realidade encontrada pela equipe do CNJ e detalhada num documento oficial, elaborado pelo órgão responsável por fiscalizar a atuação do Judiciário. Pelo menos cinco casos são de detentos cujas histórias foram contadas pelo jornal. Um deles é Antônio Vieira Lima, conhecido como Toinha. O relatório do CNJ aponta que ele “possui apenas a ação penal” e que o sistema eletrônico de tramitação processual indica unicamente o “andamento de processo distribuído em 3 de julho de 2000”, três dias antes da chegada de Toinha ao Hospital Valter Alencar. O detento tem esquizofrenia, mesmo transtorno da maioria de seus colegas.

Rede de atendimento inexiste

Estão presos no mesmo espaço Jaime de Sousa Viana e Nazareno Antonio de Sousa. O CNJ não localizou nenhum processo com as acusações e diagnósticos médicos referentes a Jaime, “mesmo após várias tentativas de busca, inclusive apenas pelo nome da genitora”. Já são 16 anos de detenção, sem a existência de processo, uma situação ilegal que se repete nas dependências do Hospital Valter Alencar. O mutirão do CNJ encontrou a ação penal referente a Nazareno: “Em 2011, o promotor de Justiça discorreu sobre a lamentável situação em que se encontram os autos, já que o réu permanece recolhido por 19 anos em razão de diversos problemas de gestão de vários poderes”, cita o relatório. O processo ficou parado por cinco anos.

O GLOBO encontrou Manoel Guedes dos Santos e Gregório Luiz de Barros em “enfermarias” que misturam pessoas com transtornos mentais e internos com outros problemas de saúde. Manoel teria retardo mental, segundo relatos de agentes penitenciários. Gregório, preso desde 1999, nunca havia recebido uma posição da Justiça. Conforme constatação do CNJ, não há qualquer processo sobre uma prisão em flagrante de Manoel, que resultou em sua ida ao hospital. Gregório, por sua vez, recebeu “absolvição sumária” depois da publicação da série de reportagens. Em 27 de maio, a Justiça aplicou uma medida de segurança a Gregório e determinou a realização de um novo exame psiquiátrico.

Ao todo, o mutirão do CNJ encontrou oito detentos no hospital penitenciário e na colônia agrícola, sem os correspondentes processos na Justiça. Eles estão presos sem que ninguém saiba oficialmente quais são as acusações imputadas. As decisões judiciais que libertaram dois internos foram acompanhadas de atos de entrega à família. Agora, a Justiça do Piauí terá de analisar todos os casos listados pelo CNJ, providenciar os exames psiquiátricos e decidir sobre a liberdade e os futuros encaminhamentos.

— O relatório do mutirão identifica casos concretos e a corregedoria da Justiça local vai acompanhar caso a caso. Os juízes terão de tomar providências. Um problema é que o estado não conseguiu implantar residências terapêuticas nem estruturar uma rede de acolhimento. Mas isso não pode levar à inércia e ao erro processual — disse o juiz Marcelo Loureiro, do TJ do Espírito Santo, coordenador do mutirão no Piauí por designação do CNJ.