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Vergonha básica

No ritmo atual, o Brasil só conseguirá oferecer água potável e tratamento de esgoto a todos os brasileiros na metade do século XXI

Por Otto von Sothen*
Atualizado em 8 dez 2017, 06h00 - Publicado em 8 dez 2017, 06h00

Imagine um país gigante com mais de 207 milhões de habitantes onde metade da população não tem coleta de esgoto em sua residência, somente 42% dos esgotos existentes recebem algum tipo de tratamento e mais de 34 milhões de cidadãos não possuem nem mesmo acesso a água tratada. Esse é o Brasil. Em termos de saneamento, estamos na 102ª colocação no ranking global do Banco Mundial.

Segundo o Plano Nacional de Saneamento Básico, conhecido pela sigla Plansab, o Brasil precisaria de cerca de 300 bilhões de reais para universalizar água e esgoto em vinte anos. Mas, ao contrário do que seria óbvio, a tendência de crescimento das despesas públicas com saneamento — na União, nos estados e nos municípios — foi brutalmente revertida a partir de 2013. No ano passado, os gastos ficaram em apenas 18 bilhões de reais — o pior ano desde 2007. Considerando-se o período que vai de 2007 a 2016, só 69,3% das despesas foram empenhadas e apenas 49,7% foram efetivamente realizadas.

Neste ano, a situação ficou ainda pior. No primeiro semestre, a despesa da União caiu a quase um terço do valor gasto nos primeiros seis meses do ano anterior. E, para o ano que vem, o Orçamento federal prevê um gasto com saneamento de apenas 941 milhões de reais. Trata-se de uma redução de 32% em relação a este ano. Ou seja: gasta-se cada vez menos, e brutalmente menos, em saneamento, o que deixa o Brasil parado no século passado.

Em 2015, a ONU lançou os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS). São dezessete objetivos e 169 metas que envolvem erradicação da pobreza, segurança alimentar, água e saneamento, entre outras. O Brasil é um dos signatários desse compromisso, que prevê “assegurar a disponibilidade e gestão sustentável de água e saneamento para todas e todos” até 2030. Trocando em miúdos: o Brasil prometeu oferecer, em treze anos, acesso universal e equitativo a água e esgoto para todos.

É uma meta improbabilíssima, caso nada seja feito. O Instituto Trata Brasil, que acompanha o assunto em todo o país, tem dados das 100 maiores cidades brasileiras. Os números mostram que, nos últimos dez anos, essas cidades avançaram menos de 1 ponto porcentual ao ano nesses indicadores. Se projetarmos esses avanços para os próximos anos, o Brasil levaria mais de quarenta anos para universalizar o saneamento, ou seja, só depois de 2050 — com sorte, vinte anos a mais do que o prazo assumido com a ONU. É lamentável que o país esteja a caminho de chegar à metade do século XXI com parte de sua população sem acesso a itens tão básicos como água e esgoto.

Enquanto isso, segundo a mais recente Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios, contraditoriamente, 92,3% dos lares brasileiros têm alguém com celular, ante 66% de lares com algum tratamento de esgoto. Esse número é de 19% na Região Norte. E, infelizmente, a situação, em vez de melhorar, só piora.

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O mapa do saneamento, como tantos outros aspectos da realidade brasileira, é profundamente desigual. Em cidades como Santos, Franca e Limeira, todas no interior de São Paulo, 100% da população é atendida por coleta de esgoto. Já em Ananindeua (PA) e Porto Velho (RO), por exemplo, os porcentuais da população que tem tratamento de esgoto em sua residência são inferiores a 4%. Apenas a Sabesp, empresa de saneamento do Estado de São Paulo, é responsável por 28% de tudo o que é investido em saneamento no país.

Para quem acha que saneamento é caro, é relevante ver o reverso da moeda. De acordo com dados oficiais do sistema público de saúde de 2015, a cidade de Ananindeua gastou 19,4 milhões de reais com doenças relacionadas à falta de saneamento básico, como diarreia, dengue e leptospirose. Já Franca, com 100% da população atendida pela rede de saneamento, desembolsou apenas 2% desse valor. Esse baixo avanço em água e esgoto, além de descumprir as promessas internacionais feitas pelo Brasil, prejudica a saúde da população, aumenta a degradação ambiental e leva à perda de recursos financeiros.

No entanto, a erradicação do problema traria ganhos sociais e econômicos para a saúde — seriam menos 700 000 pessoas internadas por doenças provocadas pelo esgoto não coletado e cerca de 2 000 óbitos anuais a menos por doenças relacionadas à falta de saneamento básico. Teríamos, ainda, aumento da produtividade do trabalho, valorização dos imóveis, ganhos na educação e uma receita estimada em mais de 537 bilhões de reais em turismo. Os cálculos mostram que, na média do período que vai de 2015 a 2035, a cada 1 000 reais que se investissem na expansão do saneamento, a sociedade ganharia 1 700 reais. Ou seja, os benefícios compensariam, com certeza, os investimentos necessários.

Se quisermos ir ainda mais longe, há países inspiradores que não somente garantiram à sua população o direito ao esgoto tratado como resolveram outras questões. É o caso de Israel, cujo índice de tratamento de esgoto chega a 90%. Esse esgoto, porém, é tratado e reutilizado, o que atenua o grave problema de escassez de água no país. Isso tudo acompanhado de um programa robusto de educação ambiental nas escolas. Na Namíbia, a água do esgoto é transformada em água potável. Em Singapura, além de próprio para o consumo, o esgoto reciclado abastece as atividades industriais. Não nos custa sonhar.

Voltando ao Brasil, é fundamental que o governo federal ofereça recursos de longo prazo, que governadores ajudem na busca por melhorias de gestão das empresas estaduais, que prefeitos deixem de ser passivos e procurem soluções, sozinhos ou em conjunto com outros municípios, que se ampliem as parcerias entre empresas públicas e privadas, que se promova a educação ambiental com foco no uso racional da água e na valorização do saneamento.

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Em março de 2018, Brasília sediará o 8º Fórum Mundial da Água. Será a primeira vez que o evento acontecerá no Hemisfério Sul, e é de prever que o mundo todo estará atento ao Brasil e às discussões dos países quanto ao mais importante dos recursos naturais. Para nós, será a oportunidade de quebrar algumas resistências e aprender com boas práticas do mundo inteiro e, infelizmente, escancarar algumas feridas abertas.

Precisamos tratar com seriedade um problema que envergonha esta nação, que está entre as dez maiores economias do planeta mas ainda apresenta índices de saneamento do século XIX. O saneamento tem de ser visto como questão de Estado, e não continuar dependendo da boa vontade de autoridade A ou B. Se não for assim, é certo que outros vexames internacionais virão. E quem paga o preço são sempre os mais desfavorecidos.

* Otto von Sothen é CEO do Grupo Tigre e presidente do Conselho Curador do Instituto Trata Brasil

Publicado em VEJA de 13 de dezembro de 2017, edição nº 2560

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