Por Marco Antônio Martins, G1 Rio


Pichação em mureta no interior do Morro Dona Marta, em Botafogo — Foto: Arquivo Pessoal

No domingo (23), por volta das 20h, um tiroteio no Morro Dona Marta assustou moradores de Botafogo, na Zona Sul do Rio. Em 2018, essa tem sido a rotina da comunidade, onde, pelo menos, duas vezes por semana, em média, se ouvem tiros, de acordo com o Laboratório de Dados Fogo Cruzado.

Na mesma noite, a defensora pública Cristina Santos Ferreira foi atingida de raspão, quando tomava banho em seu apartamento a um quilômetro do morro. A polícia investiga se o tiro veio do Dona Marta.

A comunidade vive uma realidade bem diferente dos sete anos, entre dezembro de 2008 e 2015, após a instalação da primeira Unidade de Polícia Pacificadora (UPP), quando não havia traficantes armados nem som de tiros, de acordo com relatos de policiais e de moradores.

A violência voltou: nos primeiros 5 anos de UPP houve apenas três tentativas de homicídios registradas na comunidade. Desde 2013, o número de casos chega a 92, segundo dados do Instituto de Segurança Pública (ISP).

"Teve criança que cresceu aqui sem ouvir um tiro. Agora é assim: violação de direitos o tempo todo. Não tem mais UPP, não tem mais diálogo com o cidadão", afirmou José Mário Santos, presidente da Associação de Moradores do Dona Marta.

O policiamento de proximidade deu lugar ao policiamento de confronto. O tráfico, antes desarmado, agora está fixo em pontos da comunidade defendendo os pontos com pistolas e fuzis, semelhante a outras áreas do RJ. Resultado: empresários deixaram a comunidade, e projetos sociais estão de lado.

A Polícia Militar não autorizou declaração de qualquer um dos oficiais envolvidos no planejamento de segurança da região. Disse em nota que tem "intensificado ações para reprimir o crime". A nota completa está no fim desta reportagem.

Um empresário conta que não tinha como manter o investimento no local com a presença dos criminosos. Isso se reflete nas visitas de turistas ao morro. No período pós-instalação da UPP, eram 2.000 por mês. Atualmente, não chegam a 200, segundo guias turísticos.

Moradora de prédio vizinho à comunidade Dona Marta, no RJ, é atingida por bala perdida

Moradora de prédio vizinho à comunidade Dona Marta, no RJ, é atingida por bala perdida

O G1 apurou que os traficantes proibiram os comerciantes de vender comida ou bebidas aos policiais nas biroscas localizadas no interior do morro, o que ajudou a aumentar a tensão. Os moradores também foram avisados de que não devem subir a comunidade junto com PMs. Seja nas escadas ou no plano inclinado.

No domingo, às 17h30, 1h30 antes do início dos tiroteios, a comunidade se preparava para o 12º Hip Hop do Dona Marta, na quadra no interior do morro, quando um grupo de policiais proibiu a realização do evento.

Quando os disparos começaram na comunidade, às 20h, o evento já estava desmobilizado, e as pessoas já haviam ido para casa. Os oito policiais que estavam na favela relataram que foram atacados pelos traficantes que não teriam gostado do cancelamento do Hip Hop. Já os moradores contam que os PMs começaram a disparar a esmo.

Unidades dos batalhões de Choque e de Operações Especiais (Bope) ocuparam o morro e passaram a madrugada no local.

"Estão querendo criminalizar o nosso evento destinado a creches do morro e a famílias carentes. É uma covardia da UPP", relatou Repper Fiell, um dos produtores da festa em um vídeo numa rede social.

Na segunda (24), um dia após o último tiroteio, o Dona Marta amanheceu ocupada por PMs do Batalhão de Choque e sem que os serviços funcionassem. Os professores de uma escola de música não foram à favela, nem houve atendimento na Clínica da Família.

As três creches não abriram, e os pais ficaram em casa com as crianças.

O policial Deivid Ribeiro da Silva (o segundo do grupo) em patrulhamento no Morro Dona Marta — Foto: Arquivo Pessoal

Perfil de policiais muda, segundo moradores

Quem mora no Dona Marta conta que o perfil de PMs da época quando a UPP era considerada bem-sucedida é diferente dos que estão atualmente no morro. Eles aceitaram conversar com o G1 desde que não fossem identificados.

Na mesma segunda em que o Dona Marta se mantinha ocupado, no Sul Fluminense, o soldado Deivid Ribeiro da Silva, de 38 anos, do 10º BPM (Barra do Piraí), morria em uma emboscada sofrida por ele e mais três colegas de farda, que ficaram feridos.

O soldado Silva ou Shrek, como era conhecido no Dona Marta entre os moradores, integrou até o início do ano o grupo de intervenção da UPP. Em seus plantões eram comuns confrontos entre PMs e traficantes.

O soldado também costumava fazer rondas no Dona Marta com mais três PMs. Ele era elogiado pelos colegas, mas temido por moradores desacostumados com tiroteios a qualquer hora do dia.

"O Silva que era temido e ameaçado de morte aqui na capital do RJ, numa favela, conseguiu ser transferido para perto de casa... um lugar aparentemente tranquilo", escreveu em uma rede social a capitã Tatiana Lima, ex-comandante do policial.

Policial militar é morto em tiroteio no Areal, em Barra do Piraí, RJ

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Na avaliação de moradores, o perfil do policial Silva, que atualmente se reproduz no Dona Marta, é bem diferente dos PMs que ocuparam a comunidade em dezembro de 2008 e deram início ao projeto que se espalhou por mais 39 favelas do RJ.

Inteligência desmobilizou tráfico

A proposta era que, com a favela sem tráfico, os policiais apenas garantissem a segurança de moradores. Uma polícia de proximidade administraria pequenos conflitos e evitaria, com o terreno ocupado, a ostentação de traficantes com fuzis.

Tanto que, para isso, antes da ocupação do Dona Marta pela UPP, uma operação integrada foi montada com as polícias Militar e Federal.

Um levantamento foi feito pelo Serviço Reservado do 2º BPM (Botafogo), que fotografou todos os criminosos que integravam o tráfico local. A ideia era prendê-los evitando o confronto pelo risco de vítimas de bala perdida entre moradores da comunidade e do bairro.

Próximo ao Dona Marta há escolas, a residência oficial do prefeito do Rio e até o Consulado Geral de Portugal.

O Morro Santa Marta, em Botafogo, na Zona Sul, foi o primeiro a receber uma UPP. A comunidade é, também, muitas vezes, chamada de "Dona Marta" e foi o palco principal das cenas do filme Velozes e Furiosos 5. — Foto: Instituto Pereira Passos / César Duarte

A investigação da PF descobriu que os "soldados" do tráfico não eram do Dona Marta, mas iam para lá proteger as bocas de fumo. Os policiais apuraram que, após ficarem de plantão durante a madrugada, os criminosos guardavam as armas num paiol e iam para a casa de ônibus.

Moradores do Complexo do Alemão e do Jacarezinho, os criminosos foram presos no caminho para casa, desarmados e sem qualquer confronto. Sem mão de obra, o tráfico na ocasião acabou sem ter quem defendesse o morro.

PMs corruptos foram presos, e as armas foram apreendidas. A partir daí, a ocupação do Dona Marta ocorreu sem qualquer disparo, o que atraiu investimentos de empresas e a ida de serviços para a favela.

Outro lado

Em nota, a Polícia Militar informou que não teria porta-voz para falar sobre a violência no Dona Marta. Na nota, o comando do Batalhão de Botafogo explicou que as operações só vão parar quando "a sensação de segurança dos moradores da comunidade e adjacências seja retomada".

A seguir, a nota completa da PM sobre os atuais confrontos:

"A Assessoria de Imprensa da Polícia Militar informa que o comando da Unidade de Polícia Pacificadora (UPP) Santa Marta tem intensificado as ações para reprimir as tentativas do crime organizado de retornar à comunidade nos últimos três meses.

Neste período, cinco criminosos foram presos, três em flagrante e dois com mandado de prisão em aberto, e um veio a óbito durante confronto. Também foram apreendidas duas pistolas calibre 9mm e diversos tipos de drogas embaladas e prontas para comercialização.

O setor de Inteligência da unidade também identificou a movimentação de marginais de outras comunidades para participarem de eventos musicais no Santa Marta aos finais de semana. Tais eventos não atendiam às determinações previstas no decreto n°44617, que regulamenta a realização de eventos culturais, sociais, desportivos, religiosos e quaisquer outros que promovam concentrações de pessoas no âmbito do Estado do Rio de Janeiro, tendo assim sua realização interrompida.

Informamos ainda que as ações, que contam com efetivo da UPP Santa Marta, com o apoio de outras UPPs da região e do 2º BPM (Botafogo), não cessarão até que a sensação de segurança dos moradores da comunidade e adjacências seja retomada".

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